Dois estudos da Ufes contribuem para a produção científica sobre doença falciforme

12/12/2025 - 16:26  •  Atualizado 12/12/2025 18:59
Texto: Adriana Damasceno     Edição: Thereza Marinho
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Ilustração digital de artérias com hemácias em forma de foice, características da doença

A Ufes conduz duas pesquisas que abordam a doença falciforme sob diferentes perspectivas: uma dedicada à organização e ao acesso aos serviços de saúde e outra às alterações celulares relacionadas à doença – uma condição genética hereditária, com poucas possibilidades de cura, que modifica a forma e o funcionamento dos glóbulos vermelhos, comprometendo o transporte de oxigênio e desencadeando crises dolorosas, isquemia e outras complicações graves. O objetivo comum dos estudos é ampliar a compreensão dos impactos da enfermidade, que acomete entre 5% e 7% da população mundial, além de contribuir para o cuidado de populações afetadas e para a melhoria do atendimento, do diagnóstico e da qualidade de vida dos pacientes. 

A pesquisa Caracterização topográfica e espectral de eritrócitos e drepanócitos por microscopia de força atômica e Espectroscopia Raman, que está sendo desenvolvido por Lizandra Sarmento no Programa de Pós-Graduação em Bioquímica (PPGBiq/Ufes) em parceria com o Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), busca compreender os mecanismos celulares associados à fisiopatologia da doença e gerar dados comparativos entre células normais e falcêmicas, aperfeiçoando o entendimento molecular e o potencial diagnóstico da condição.

Já o estudo Acesso aos serviços de saúde por pessoas com doença falciforme em Angola, conduzido pela pesquisadora angolana Suraya Roberto Filho no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (PPGSC/Ufes), analisa como o sistema de saúde do país africano responde às necessidades dessas pessoas, identificando barreiras, lacunas e desafios na organização do cuidado. O trabalho visa contribuir para a redução dos efeitos adversos da doença mediante melhorias no sistema de saúde, elaborar recomendações para formulação de políticas públicas, aprimorar práticas assistenciais e fortalecer a cooperação científica entre Brasil e Angola. 

As pessoas com doença falciforme podem apresentar sintomas como palidez ou icterícia, fraqueza, crises dolorosas frequentes em várias partes do corpo, inchaço das mãos e pés (especialmente em crianças), infecções recorrentes, atraso no crescimento, alterações visuais e, em casos mais graves, acidente vascular cerebral (AVC). O diagnóstico é realizado principalmente pela triagem neonatal, conhecida como teste do pezinho, preferencialmente entre o terceiro e quinto dia de vida. 

Foto de uma enfermeira coletando sangue do pé de um bebê
Teste do pezinho: uma das principais formas de diagnosticar a doença

Abordagem molecular

No estudo desenvolvido pela biomédica Sarmento o foco é a investigação molecular da doença falciforme. Orientada pelas professoras Marcella Porto (PPGBiq/Ufes e Ifes) e Glória Viégas (Ifes), a pesquisa combina Microscopia de Força Atômica e Espectroscopia Raman para observar, em detalhes, como as hemácias normais e falcêmicas se diferenciam em estrutura, rigidez e composição química. Segundo a pesquisadora, essas análises permitem identificar marcadores que podem tornar o diagnóstico mais preciso e auxiliar no acompanhamento clínico, favorecendo intervenções personalizadas.

Entre 2014 e 2020, o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) registrou 1.087 novos casos de crianças diagnosticadas com doença falciforme no Brasil, uma incidência de cerca de quatro casos a cada dez mil nascidos vivos. O Ministério da Saúde estima que haja, atualmente, entre 60 mil e cem mil pacientes com a patologia no país. “A doença falciforme tem alta prevalência, especialmente em populações afrodescendentes, e representa um importante desafio para a saúde pública devido à sua complexidade clínica e ao impacto significativo na qualidade de vida. Embora haja avanços no manejo clínico, ainda existem lacunas no entendimento das características biomédicas e das variações clínicas, o que limita o desenvolvimento de tecnologias diagnósticas e terapêuticas eficazes”, ressalta.

Segundo ela, o uso de técnicas precisas possibilita um diagnóstico precoce e sensível, além de um monitoramento detalhado da progressão da doença, permitindo ajustes terapêuticos personalizados mais adequados: “Com os dados obtidos sobre alterações na rigidez da membrana celular e nos compostos moleculares, os profissionais de saúde podem compreender melhor as variações fenotípicas e desenvolver planos de cuidado individualizados, contribuindo para um manejo clínico mais eficaz e para a prevenção de complicações”.

As amostras utilizadas são coletadas em parceria com o Centro de Hematologia e Hemoterapia do Espírito Santo (Hemoes). As análises por microscopia óptica, força atômica e Espectroscopia Raman ocorrem no Laboratório Multiusuário de Experimentação (LabMInst/Ufes), no Grupo de Estudos em Microscopia (Gem/Ifes) e no Programa Interdisciplinar de Promoção e Atenção à Saúde (Pipas/Ifes). “Ufes e Ifes são instituições públicas comprometidas com ensino, pesquisa e extensão. São, portanto, instituições irmãs que desenvolvem diversas parcerias e este projeto é mais uma delas, contribuindo com informações qualificadas sobre a doença falciforme, muitas vezes negligenciadas pela comunidade”, destaca a coorientadora Viégas.

Saúde em Angola

Imagem
Foto de um médico atendendo uma mulher em um hospital de Angola
Em Angola, a doença atinge cerca de 20% da população

A socióloga Suraya Roberto Filho concentra seu estudo nas barreiras enfrentadas por pessoas com doença falciforme em Angola – um grupo expressivo, já que a condição atinge cerca de 20% da população. Para compreender como os serviços de saúde são organizados e como esses usuários conseguem (ou não) acessar os cuidados necessários, a pesquisadora analisa documentos oficiais, como legislações e diretrizes, examina políticas públicas e realiza entrevistas com profissionais e gestores de Luanda, capital do país.

Orientada pelas professoras da Ufes Carolina Esposti e Luciana Nascimento, a pesquisadora verificou que seu país apresenta uma distribuição desigual de unidades de saúde e de determinantes sociais do cuidado, situação que também se reflete na disponibilidade de profissionais, medicamentos e equipamentos, predominantemente concentrados em áreas urbanas. “Isso dificulta a padronização do acesso das pessoas com doença falciforme, que, infelizmente, têm um quadro fisiopatológico muito instável. O deslocamento em busca de atendimento gera custos adicionais, o que contribui para a ausência de estatísticas confiáveis sobre essas patologia”, afirma.

Para a pesquisadora, estudar remotamente sobre a doença, tendo Angola como contexto de investigação, representa uma motivação “patriótica, social e política” e uma forma de contribuir com seu país. Segundo ela, a formação em uma instituição brasileira – “país com a maior diáspora africana com a doença falciforme” – tem ampliado seu desenvolvimento acadêmico, oferecendo acesso à literatura atualizada, debates metodológicos e comparações internacionais: “O Brasil possui uma cultura de produção, comprometimento e promoção científica de destaque e que muito admiro”.

Limitações

Foto da tela do computador onde acontece uma reunião on-line entre as pesquisadoras
O ambiente virtual ajuda a superar barreiras geográficas

Roberto Filho reconhece que a distância impõe limites, como a impossibilidade de observar diretamente os serviços de saúde ou realizar entrevistas presenciais, mas afirma que essas dificuldades têm se mostrado transformadoras. “A experiência e o profissionalismo da minha orientadora e coorientadora me permitem desenvolver estratégias metodológicas mais colaborativas, envolvendo pessoas que estão em Angola. Isso fortalecerá a credibilidade e a contextualização dos resultados desse rico estudo. Felizmente, o ambiente virtual também tem o seu lugar na pesquisa científica e tem me auxiliado bastante nessa jornada”, destaca.

A coorientadora Nascimento acrescenta que produzir conhecimento com recursos limitados e enfrentar barreiras geográficas e culturais é desafiador, mas avalia que a experiência tem sido enriquecedora graças ao trabalho conjunto do grupo interprofissional. Segundo ela, a colaboração e a diversidade de formações das pesquisadoras fortalecem o percurso investigativo e serão essenciais para a conclusão do estudo. “O desenvolvimento da pesquisa no âmbito da Ufes é estratégico para o êxito dos objetivos propostos, considerando sua capacidade instalada e a trajetória consolidada da Universidade em ações de pesquisa, ensino e extensão, realizadas em âmbito nacional e internacional”, conclui.

A pesquisa de Roberto Filho tem previsão de conclusão em agosto do próximo ano, enquanto a de Sarmento deve ser finalizada entre maio e junho de 2027. 
 

Fotos: Biblioteca Virtual de Enfermagem, Agência Senado, Organização Mundial de Saúde e arquivo das pesquisadoras

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