Os direitos coletivos e individuais à saúde prevalecem em caso de colisão de direitos no enfrentamento às pandemias. A afirmação está no artigo publicado nesta sexta-feira, 8, na revista britânica Frontiers in Public Health, que tem como um dos autores o professor Luiz Carlos de Abreu, do Departamento de Educação Integrada em Saúde do Centro de Ciências da Saúde da Ufes. Ele também é professor adjunto da Escola de Medicina da Universidade de Limerick, na Irlanda – uma modalidade de professor visitante. Também assinam o artigo os pesquisadores José Santos, Paulo André Messetti, Fernando Adami, Italla Maria Bezerra, Paula Christianne Maia e Elisa Tristan-Cheever.
Com o título Collision of Fundamental Human Rights and the Right to Health Access During the Novel Coronavirus Pandemic – Colisão de direitos humanos fundamentais e o direito ao acesso à saúde durante a nova pandemia do coronavírus –, o artigo reúne dados apurados de 2002 a 2020, sendo selecionados casos recentes de pandemias e de medidas adotadas para proteção dos sistemas de saúde pública e seus questionamentos em Singapura, Tunísia, China, Canadá, Reino Unido, Estados Unidos, Suíça, Portugal e Espanha.
Recusa à vacina
O professor Abreu lembra que o tema abordado no artigo é bastante oportuno neste momento em que, no Brasil, ainda persiste em alguns grupos a posição de que a recusa à vacina contra o novo coronavírus pode ser uma decisão individual, mesmo que para a saúde pública o importante seja a imunização de toda a população. Segundo o professor, a grande contribuição da pesquisa é trazer luz ao debate sobre o comportamento social diante dos direitos individuais e coletivos.
“Quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) decreta pandemia, significa que todos nós precisamos seguir o que está determinado [pelos governos]. Por outro lado, estamos tratando do direito de sair de casa quando eu quero, por exemplo. Fomos investigar como isso aconteceu. A COVID-19 é algo novo, o que temos de similar são os casos de H1N1, bem como os tratamentos dados durante as epidemias de SARS e de MERS e nos surtos de Ebola. Então, eu tenho direito à vida, à saúde, e também não posso colocar a minha e a sua vida em risco”, afirma o professor.
Ele lembra que as medidas não farmacológicas são importantíssimas para a não circulação do vírus. “Dessa maneira, quando não se usa máscaras, ou não se cumpre regras de distanciamento social, se está legitimando o Estado a definir a precedência de direitos coletivos e individuais à saúde sobre supostos direitos individuais dissociados da solidariedade – isso indica uma possível colisão de direitos fundamentais”, declara Abreu.
O cruzamento dos dados rendeu a produção de tabelas com situações específicas encontradas em cada um dos países, com medidas de proteção à saúde pública e aos direitos individuais e coletivos à saúde, assim como a definição de condições para estabelecimento de restrições classificadas como justas. Dentre essas condições, estão o risco significante aos indivíduos e as medidas de intervenções proporcionais para diminuir esses riscos.
Direitos fundamentais
Para o advogado Paulo André Messetti, doutorando na Faculdade de Medicina do ABC (São Paulo) e um dos autores do artigo, existe um conjunto de direitos fundamentais consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e incluídos pelos países em suas constituições. “A colisão acontece na esfera de princípios, pois são [em alguns casos] dois direitos incidindo sobre uma [mesma] situação, [por exemplo] liberdade e saúde. Os dois direitos são válidos, os dois existem e não há uma hierarquia entre eles. A partir da análise que fizemos, se sustenta a ideia de que o direito à saúde, seja coletiva ou individual, deve prevalecer quando há necessidade de preservar o acesso à saúde e aos serviços de saúde para se promover a vida, a dignidade humana e os valores humanitários e sociais”.
Segundo o advogado, há uma teoria interna dos direitos fundamentais que considera que cada direito é independente, atomizado, não invade a esfera do outro. “Não é a noção mais razoável. E mesmo os teóricos dessa linha admitem o que consideram colisão aparente”, explica.
Por outro lado, a maioria consagrada dos teóricos considera que a colisão ocorre. Para essa linha, os direitos – à saúde, à liberdade, à proteção social, à dignidade, à prevenção em eventos indesejáveis para o bem público –, em primeira face, não colidem. Mas, no caso concreto, a depender da situação, um direito tem necessidade de prevalecer sobre o outro porque aquela é a melhor solução de justiça. “Aí entra a noção de liberdade situada, que não pode ser absoluta, porque nesse caso impede que outros direitos existam”, esclarece.
Sintonia
É como se os direitos tivessem que estar em fina sintonia. Assim, os direitos à saúde pública, coletiva ou individual, à solidariedade, à proteção social e os direitos dos vulneráveis – como pessoas em situação de rua ou população carcerária, e os profissionais da saúde – precisam estar compatibilizados com outros direitos, como o direito de ir e vir, buscando a melhor interpretação que se tem das garantias e dos direitos fundamentais.
O artigo traz uma compilação das condições que devem ser consideradas para a tomada de medidas extremas de priorização e restrição de direitos fundamentais em pandemias, para que sejam éticas e juridicamente sensatas e defensáveis: “A medida extrema deve ser pautada em sólidos fatos, deve ser fundamentada na melhor evidência científica disponível, basear-se na menor causação de riscos à saúde pública e individual, priorizar os direitos individuais e coletivos à saúde, não causar diretamente danos à vida, à saúde e à dignidade de quaisquer pessoas, ser presumidamente incapaz de causar danos a qualquer um e, sobretudo, deve melhor favorecer os mais vulneráveis”, afirmou Messetti.
Base empírica
Segundo o professor Abreu, o tipo de estudo realizado, em base empírica de literatura, não permite afirmar qual foi o resultado da mediação entre os direitos a partir das medidas adotadas nos países pesquisados, mas há descrição das decisões tomadas que foram encontradas nos países e como elas, em sua maioria, deram prioridade aos direitos da saúde. “O que o estudo nos aponta é que, sim, há colisão, e nós temos que tomar a melhor decisão, mesmo sabendo que em alguns momentos vamos ter um direito se sobrepondo ao outro”, explicou.
Quando falamos em sobreposição de direitos em prol do bem comum, em geral, pensamos no coletivo sobre o individual. Mas, o advogado Messetti lembra que, além de a saúde individual ser tão importante quanto a coletiva, há casos em que o direito individual interessa a toda a coletividade. Ele cita, por exemplo, o caso de um preso com comorbidades que, se foi infectado pelo coronavírus, tem todas as chances de adoecer e disseminar o vírus. Nesse caso, sair da prisão – seja com restrição de liberdade em prisão domiciliar, uso de tornozeleira eletrônica ou outro mecanismo legal – favorece tanto o indivíduo, que sairá da prisão, quanto a saúde coletiva.
O mesmo ocorre no caso do profissional da saúde que, por objeção pessoal, não aceita se submeter ao atendimento de infectados, pois faz parte de grupo de maior risco de adoecimento e de morte. A sua decisão de priorizar o direito individual à saúde pode favorecer a coletividade, ao evitar a disseminação da doença e o contágio de mais pessoas vulneráveis.
Texto: Sueli de Freitas
Imagem: Raquel Portugal/Fiocruz
Edição: Thereza Marinho